domingo, 31 de julho de 2011

REPORTAGEM DE SILVEIRAS

CULTURA POPULAR

O dia em que o tempo parou
A reunião de velhos tropeiros em Ronco dÁgua traz à lembrança um Brasil que cresceu sobre cascos de mula

Texto Suely Gonçalves
Fotos Ernesto de Souza


João, Josias, Joaquim e Mestre Ditinho: reunião de memórias
Às 6 horas da manhã, sentado na soleira da porta de sua casinha no bairro do Bom Jesus, município de Silveiras (SP), Benedito Henrique de Paula não chegou a ouvir no último 31 de agosto o toque da alvorada que anunciava o Dia Nacional do Tropeiro. Nem ele nem Joaquim Governo, companheiro fiel de longas jornadas. Os dois tinham outro plano para esse dia: visitar os irmãos João e Josias Mendes. Seria esse, depois de muitos anos, um reencontro de velhos tropeiros.
Cincerro, o sino que vai no pescoço da madrinha, a mula que segue à frente da tropa
No caminho do Ronco d'Água, onde os irmãos vivem em sossego garantidos por um gadinho de leite e uns palmos de lavoura, as lembranças brotavam da mata fechada. Não ficava ali o mangueirão que tantas vezes serviu de pouso para a tropa? Como os 85 anos de vida não chegaram a bulir em sua memória, Ditinho vez por outra ia corrigindo Joaquim. É verdade que o asfalto cobriu as trilhas e o ronco dos motores espantou pra longe os coleirinhos-do-brejo e os tico-ticos, mas ficava ali, sim, depois da curva fechada, a entrada do grotão que levava à Serra da Bocaina, por onde as tropas subiam e desciam carregadas de tudo: café, milho, feijão, tijolo, pisando o mesmo caminho por onde, durante dois séculos, mulas carregadas com o ouro das Minas Gerais seguiam em direção ao porto de Parati.
Mais duas léguas de lembranças e chega-se à casinha de João escondida na neblina. A surpresa faz o tropeiro abandonar a gaiola do azulão e com respeito de aprendiz tirar o chapéu para o velho mestre: 'Josias de Deus, vem ver quem chegou'. Pronto. Diante do fogão de lenha e do bule de café quente e forte a prosa corre solta como se o tempo tivesse parado. Volta e meia a valentia de Ditinho aparece permeando os 'causos'. Domador de burro bravo e tropeiro desde os 7 anos, ele ensinou o ofício a todos.
Aprender até foi fácil. Difícil era sossegar em casa, ver os filhos crescerem. A fartura brotava nas terras de João Romão, poderoso senhor de oito fazendas espalhadas por vales e grotões e cuja produção movimentava imensas tropas meses a fio.
A festa do Dia Nacional do Tropeiro, em Silveiras, criada pelos quatro companheiros há 30 anos: estridência de 70 mil visitantes a torna irreconhecível para os velhos tropeiros
Os ecos da festa do Dia Nacional do Tropeiro não chegam ao Ronco d'Água. E mesmo que chegassem não seriam capazes de animar os quatro companheiros. Em meio à estridência dos quase 70 mil visitantes que invadem Silveiras nessa data, eles não reconhecem mais a festa que inventaram há quase 30 anos, quando, por pura brincadeira, armaram um trempe na pracinha e ofereceram a uns poucos curiosos feijão, toucinho e arroz. Um litro de cachaça animou a cantoria de viola que entrou madrugada adentro. E sobre esse assunto mais não dizem. Os velhos tropeiros preferem não corromper a memória do tempo.
Hora de partir. Como que se despedindo, a mula Jeitosa risca o casco na pedra. Ditinho se volta. É tudo lembrança...

Porta coador de café é utilizado pelos tropeiros durante as longas viagens
João, Josias, Ditinho e Joaquim não sabem, mas foi nos cascos das mulas que durante dois séculos a riqueza do Brasil circulou. Os destemidos tropeiros, mensageiros do Brasil colônia, expandiram fronteiras, criaram vilas e cidades e integraram um país continental. Não fossem eles, a fome que assolou a região mineradora em 1697, 1700 e 1713 teria dizimado a multidão que se dirigiu às Minas Gerais atraída pela descoberta de ouro e diamantes. Se havia braço para o garimpo não havia para a lavoura. A salvação chegou no lombo das tropas que circulavam sem parar transportando alimentos, garantindo o trabalho extrativista. Os tropeiros chegavam trazendo comida e saíam carregados de ouro em direção aos portos do Rio de Janeiro e de Parati, de onde voltavam com os produtos manufaturados vindos de Portugal.
Com tanta atividade foram semeando pelo caminho os 'encostos', pousos em pasto aberto que depois se transformaram em 'ranchos', abrigos já construídos, pontos de partida para a formação de vilas e povoados. Em torno do movimento das tropas foram surgindo novas profissões: o peão domador, o ferrador, o coureiro, o rancheiro, o aveitar, uma espécie primitiva de veterinário.
Naqueles tempos, quem se aventurasse a desbravar os caminhos do Brasil sabia que teria que levar a fome na garupa. Não havia alimento ao longo do percurso e os tropeiros garantiam a sobrevivência levando nas mochilas farinha de mandioca bem seca que comiam misturada à carne-de-sol que o próprio gado transportado fornecia. Quando a fome apertava, o jeito era apelar para os bichos-de-taquara, chamados gusanos, e para os içás torrados.
Enfrentando inimagináveis perigos e privações, o tropeirismo, ao lado das entradas e bandeiras, fez parte da grande movimentação humana que teve início no século 16. E não foi pequena sua contribuição. Empurrando fronteiras, os tropeiros definiram o mapa do Brasil integrando as regiões de um país imenso. Sem eles, a exploração das jazidas de ouro e diamantes seria impossível e a atividade pecuarista não teria se alastrado do Sul para São Paulo e depois para Mato Grosso e Goiás.
Mesmo sem saber, João, Josias, Ditinho e Joaquim fazem parte dessa história.

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